Friday, March 17, 2017

Carta ao meu Avô

Chegou a hora, meu querido Avô.
O pêndulo do relógio da sala de jantar parou, é o teu tempo de partir.
Guardemos os talheres, fechemos as janelas, apague-se a luz.
A mesa estava posta e a conversa ficou a meio, eu sei, mas é a vida.

Vamos, eu guio-te pela mão, percorramos juntos este longo corredor uma última vez.  Este corredor que viu os primeiros passos de tantos netos e bisnetos, que foi palco de efusivos jogos de futebol, corridas desenfreadas, de infinitos passeios solitários. Este corredor que foi galeria de arte, museu de memórias e arquivo dos traços coloridos na nossa infância.

[Podes não ter percebido isso, mas eu lembro bem o orgulho do dia em que finalmente vi pendurado o meu primeiro desenho, ali no mural dos mestres, junto das obras dos meus irmãos e primas. ]

Anda, vamos. Despedimo-nos da despensa, dos pacotes de chocolates e das bolachas que ficarão tristonhamente por abrir, são os últimos da reserva que infalivelmente mantinhas para alegria dos netos.  Da casa-de-banho, tomas na mão umas últimas gotas do teu Brut, o cabelo impecável a condizer com o fato, exactamente como nas fotografias. As pernas já não te pesam, as costas endireitam-se, o teu passo é firme novamente até à sala de estar.

Olhamos em volta, a sala cheia de fotografias, hoje todos esses sorrisos cedem por momentos às lágrimas enquanto se despedem de ti. Pego num retrato, sou eu com uns 5 anos, cheio de bochechas a fazer um desenho. Relembras-me que alguém um dia disse olhando para essa fotografia e para essas bochechas “este  vê-se logo que é seu neto, tem mesmo a sua cara, senhor Gastão”.  E de algum modo tinha.

Vá, sequemos as lágrimas, é hora da última viagem. Preparei-te um farnel, um desses pães que tu gostas, com geleia.  Eu tiro o trinco à porta, desçamos as escadas, o carro está à espera. O teu fiel Citroen BX veio prestar-te guarda de honra,  podemos ir. Se preferires, vai antes num desses barcos do Campo Grande em que passeávamos por tardes de Domingo quando fazia calor, anda, toma os remos, aproveita a brisa.

O passeio à Ericeira para ir comer os ouriços terá que ficar para a próxima.

Havemos de voltar a atirar pão aos patos no Parque Eduardo VII.
Havemos de revisitar a tua colecção de selos e completar as colecções de moedas.
Havemos de voltar a ir ver a bola ao antigo Estádio da Luz, quando te der jeito.
Havemos de ir a Cabanas passar férias, relembrar as inesquecíveis fotografias de um eterno Verão.
Havemos de ser da mesma idade, os dois, e relembrar num abraço cúmplice e terno o tempo da nossa infância.

Boa viagem, meu querido Avô.



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