Thursday, December 29, 2005

Ao Manel Alfredo

O homem é um animal social. Esta premissa filosófica estabelecida por John Locke no século XVII é ainda hoje geralmente aceite, excepto quando vamos à casa de banho, onde francamente nos sabe bem um pouco de sossego.

O homem vive e define-se em sociedade, aliás a maioria das nossas qualidades e defeitos são facilmente amplificados ou anulados pelas nossas aptidões sociais. Um tipo com uma inteligência claramente acima da média é completamente inútil para a sociedade quando se torna insuportável para todos os que o rodeiam. Ninguém gosta de ser gozado. Preferimos sempre ter por companhia pessoas relativamente inaptas no que toca a apreciar ópera ou recitar o alfabeto grego, desde que sejam bons compinchas de copos ou consigam contar até 10 num único arroto.

Vivemos em diferentes grupos e neles construímos a nossa memória e identidade. O nosso grupo de amigos de infância, o grupo da escola ou da universidade, o grupo do nosso primeiro emprego, cada um lembra-nos de como éramos nessa altura. Transitamos de um grupo para outro, e como um camaleão vamos subtilmente ganhando novas cores enquanto muda o nosso pano de fundo.

Há um momento precioso na vida de cada grupo em que se atinge a sintonia perfeita. Cada pessoa conhece bem o seu papel, há uma química estabelecida no relacionamento mútuo, uma linguagem própria e apertos-de-mão secretos. Trocamos alcunhas e damos alegremente calduços uns aos outros. Podemos ser os palhaços do grupo, o porreiraço ou o chonas, o gajo que manda as piadas ou o gajo sobre quem se contam piadas, mas temos sempre orgulho em fazer parte do grupo.

Por vezes essa harmonia perde-se, sem se dar por isso, porque alguém muda de emprego ou muda de cidade, porque um casal se separa, porque alguém deixou de ter tempo para dedicar à tribo ou porque a vida o mudou não apenas por fora. Todos os outros continuam, os mesmos, mas juntos já não são exactamente o mesmo. Perde-se o momentum do grupo, a zona de conforto, esse período dourado em que um grupo é muito mais que a soma das partes.

É assim em tudo. A equipa do Benfica dos anos 60, o elenco original do Ally McBeal, o grupo de amigos do colégio, a maioria dos grupos não resiste ao tempo e à mudança, deixam de se encontrar nas suas rotinas. Life goes on. Talvez tenham tido provas de fogo que não conseguiram superar. Talvez tenha havido um momento em que alguns cresceram demasiado depressa e deixaram de se rir das mesmas piadas.

Mas outros, como o elenco do Seinfeld ou do Friends, mantêm a magia, conseguem evoluir sem perder a espontaneidade, talvez porque se mantenham infantis depois de muitos anos que atravessam casamentos e primeiros filhos, ou talvez por saberem que é sempre melhor continuar juntos a ver como a vida nos muda.

Monday, December 12, 2005

Um dia no Estádio

Ir ao Estádio da Luz é muito mais do que ir ver futebol. É que boa parte do espectáculo passa-se nas bancadas, no meio daquilo que Gabriel Alves definiu como a moldura humana, aquele ambiente de circo romano onde o povo se encontra para descarregar as agruras do dia-a-dia e mandar as suas bojardas de fim de semana. No Terceiro Anel sentimo-nos em casa, sobretudo se a nossa casa cheirar a cerveja e arroto e toda a gente berrar uns com os outros, entre outras coisas que definem um lar feliz.

Na grande família do Estádio da Luz encontram-se pessoas que se entregam a uma mesma comunhão pondo de lado as suas diferenças, personagens ímpares e invulgares que se sentam ao lado de outras absolutamente normais.

O treinador de bancada
O verdadeiro treinador de bancada é normalmente um gajo com razoável bom senso, que tenta fazer valer as suas opiniões técnico-tácticas gritando indicações para o treinador durante os 90 minutos. Quando o Benfica está a perder, ele grita pelo Mantorras. Quando o Benfica está a ganhar, ele grita pelo Mantorras. O treinador de bancada nunca será um treinador a sério, porque lhe falta a originalidade e ousadia de ir para além do senso comum, sendo incapaz de rasgos como meter o Carlitos a titular contra o Sporting ou insistir no Michael Thomas como trinco de marcação.

O velho rezingão

O velho rezingão é o adepto jurássico que se lembra de ir ver jogos ao campo da Amoreira e de jogar às cartas com o Borges Coutinho. Fiel ao seu Benfica, assiste aos jogos com um misto de nostalgia e sofrimento, lamentando eternamente o Eusébio já não poder calçar as chuteiras e entrar em campo. Para o velho rezingão, não há nada como os bons velhos tempos do Coluna e do Jaime Graça, lateral direito como o Simões ou ponta-de-lança como o Torres. Parco em elogios às equipas do Benfica pós-anos 70, é difícil arrancar-lhe um sorriso durante o jogo, mas ele lá continua a ir todos os Domingos ao estádio para contar à malta como é que era.

O puto e o pai
A educação de uma criança faz-se destes momentos de cumplicidade entre pai e filho que só uma ida à bola proporciona. Vestido a rigor de boné e cachecol e com uma bandeira orgulhosamente hasteada na mão direita, o puto começa a gostar de futebol, aprende a saborear um bom courato e ouve os primeiros palavrões. Durante os jogos o puto não para de fazer perguntas sobre o fora-de-jogo e os nomes dos jogadores para desespero do pai, que volta e meia lhe enfia um tabefe para que o deixe sossegado a beber a sua Sagres. Mas lá fazem as pazes quando o puto diz “ó pai, o árbitro é filho da puta, não é?”, ao que o progenitor não consegue disfarçar uma pequena lágrima de orgulho.

O gajo-que-sai-mais-cedo
O gajo-que-sai-mais-cedo odeia trânsito, por isso chega três horas antes do jogo para ter lugar perto do Estádio e fazer a sua voltinha pela loja do Benfica. Como todos os adeptos, começa a ficar nervoso perto do final do jogo, não porque o jogo continua empatado e não há maneira de marcarmos um golo, mas porque “a esta hora a segunda circular deve estar um espectáculo”. No fundo basta-lhe sair cinco minutos mais cedo para chegar num instante ao carro e ainda ouvir o fim do relato, sem confusões. O único momento infeliz na vida do gajo-que-sai-mais-cedo é quando vai a descer a escadaria e ouve um bruá enorme a toda a volta, enquanto o Luisão marca o golo decisivo que deu o campeonato ao Benfica.

O mediático
O mediático é o Che Guevara dos adeptos, um sindicalista que não falha uma Assembleia Geral e que vai aparecendo nos momentos importantes da vida do clube. Toda a gente o conhece, já o viu nos telejornais e na capa d’A Bola apesar de não lhe conhecer o nome. O Benfica ganha ao Porto nas Antas, e lá está “o Barbas” a estender a bandeira ao Eriksson no aeroporto e a rezar a meca, discute-se em assembleia o financiamento do novo estádio e lá está “o-gajo-do-bigode” a dizer umas barbaridades incompreensíveis e a acabar cada frase com “Vivó Benfica! Vivó Benfica! Vivó Benfica!”. É o sonho do adepto anónimo.

O gajo-contra-o-mundo
O gajo-contra-o-mundo já está irritado antes do jogo começar. Anti-social por natureza, ele vem ao estádio para descarregar a sua raiva e insultar quem lhe aparecer à frente. Apesar de ser do Benfica, passa o jogo a chamar nomes aos jogadores e a incentivar a equipa contrária a marcar um golo, “para ver se aprendem a jogar à bola, seus c**** do c*******”. Se o Geovanni marca um golo no último minuto, deixa-se ficar sentado e diz “’tava a ver que falhavas, meu f**** da p****”.

O cómico
O cómico é um animal de palco, e o seu palco é o Terceiro Anel. Mais interessado em soltar umas gargalhadas do que em ver a sua equipa marcar golos, vai soltando umas piadas de caserna e animando a malta à volta. O cómico tem uma cultura acima da média e faz por isso comentários mais refinados sobre a prestação da equipa, como “Artur Jorge e se fosses mas é escrever poesia prá Sibéria”, “Carlitos troca as chuteiras” ou “ó Nuno Gomes vai prá Ismérnia!”.

A velhinha-no-carro
A velhinha-no-carro não é vista normalmente nas bancadas porque passa o jogo à espera do marido no carro, já que prefere ficar no sossego do Citroën BX a recuperar o atraso no crochet e fazer uns quantos Sudokus. É o exemplo perfeito da lealdade das mulheres à antiga, e a prova de como é bonito um casal partilhar um hobby em comum.

(Como é lindo o meu Benfica!)

Friday, December 02, 2005

Mrauk U, Birmânia



Muita gente questiona se se deve visitar a Birmânia (Myanmar), tendo em conta a opressão que a junta militar instalada pratica desde 1988. A própria Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da Paz, pediu que turistas se abstivessem de visitar o país, por parte do dinheiro acabar nas mãos dos opressores, por ser um potencial sinal de aprovação internacional, porque algumas das infraestruturas turísticas foram construídas com a mão-de-obra de trabalho forçado.

O site da Lonely Planet lista os pros e contras de visitar a Birmânia. Alguns dos "pros" são a possibilidade de contribuir para a melhoria das condições de vida das populações locais, a maior dificuldade que qualquer forma de poder terá de cometer atrocidades com o testemunho de visitantes estrangeiros, ou o peso que uma maior dependência do negócio do turismo poderá ter sobre a condução da política interna no futuro.

Decidir não visitar a Birmânia significa também deixar o povo birmanês definitivamente isolado, fechado ao mundo, não permitindo qualquer contacto com o mundo ocidental e uma certa ideia de liberdade.

E nunca ver in loco imagens como esta, em Mrauk U, antiga capital da Birmânia.