Chegou a hora, meu querido Avô.
O pêndulo do relógio da sala de jantar parou, é o teu tempo
de partir.
Guardemos os talheres, fechemos as janelas, apague-se a luz.
A mesa estava posta e a conversa ficou a meio, eu sei, mas é
a vida.
Vamos, eu guio-te pela mão, percorramos juntos este longo
corredor uma última vez. Este corredor
que viu os primeiros passos de tantos netos e bisnetos, que foi palco de
efusivos jogos de futebol, corridas desenfreadas, de infinitos passeios
solitários. Este corredor que foi galeria de arte, museu de
memórias e arquivo dos traços coloridos na nossa infância.
[Podes não ter percebido isso, mas eu lembro bem o orgulho
do dia em que finalmente vi pendurado o meu primeiro desenho, ali no mural dos
mestres, junto das obras dos meus irmãos e primas. ]
Anda, vamos. Despedimo-nos da despensa, dos pacotes de
chocolates e das bolachas que ficarão tristonhamente por abrir, são os últimos
da reserva que infalivelmente mantinhas para alegria dos netos. Da casa-de-banho, tomas na mão umas últimas
gotas do teu Brut, o cabelo impecável a condizer com o fato, exactamente como
nas fotografias. As pernas já não te pesam, as costas endireitam-se, o teu passo
é firme novamente até à sala de estar.
Olhamos em volta, a sala cheia de fotografias, hoje todos
esses sorrisos cedem por momentos às lágrimas enquanto se despedem de ti. Pego
num retrato, sou eu com uns 5 anos, cheio de bochechas a fazer um desenho.
Relembras-me que alguém um dia disse olhando para essa fotografia e para essas
bochechas “este vê-se logo que é seu
neto, tem mesmo a sua cara, senhor Gastão”.
E de algum modo tinha.
Vá, sequemos as lágrimas, é hora da última viagem. Preparei-te
um farnel, um desses pães que tu gostas, com geleia. Eu tiro o trinco à porta, desçamos as escadas,
o carro está à espera. O teu fiel Citroen BX veio prestar-te guarda de
honra, podemos ir. Se preferires, vai antes
num desses barcos do Campo Grande em que passeávamos por tardes de Domingo
quando fazia calor, anda, toma os remos, aproveita a brisa.
O passeio à Ericeira para ir comer os ouriços terá que ficar
para a próxima.
Havemos de voltar a atirar pão aos patos no Parque Eduardo
VII.
Havemos de revisitar a tua colecção de selos e completar as
colecções de moedas.
Havemos de voltar a ir ver a bola ao antigo Estádio da Luz,
quando te der jeito.
Havemos de ir a Cabanas passar férias, relembrar as
inesquecíveis fotografias de um eterno Verão.
Havemos de ser da mesma idade, os dois, e relembrar num
abraço cúmplice e terno o tempo da nossa infância.