Tuesday, December 23, 2008

Monday, December 08, 2008

Quarta Carta, sobre o teu Pai

(escrita pela tua Mãe)

Ao fim de três cartas, meu querido filho, já deves ter absorvido na profundidade do teu ser, o quanto teu pai é sensível, puro, completo.

Sim, agora é a tua mãe que te escreve ... para que possas ter nestas cartas, um pouco do teu pai, aos olhos da sua mulher que o ama, incondicionalmente, muito para além do que o tempo consegue contar.

O teu pai foi o último dos cinco filhos da Margarida e do Fernando. Depois da Marta, Constança, Rodrigo e Gonçalo, veio o João, teu pai, de braços gordinhos prontos a abraçar o mundo e olhos grandes, mais tarde emoldurados por sobrancelhas revoltas que tornariam o seu olhar ainda mais intenso, convidando-o a ver mais além.

Entre Portugal, Suíça, Bélgica e de novo Portugal, o teu pai fez-se Homem, experimentando com a ligeireza de uma pessoa “intelixente” os desafios da escola, faculdade e trabalho. E se já esses feitos são motivos de orgulho, vais ver que mais inspirador ainda é a vontade insaciável do teu pai de correr atrás do que o desperta e consegui-lo, tão simplesmente conduzido por esse querer arrebatador de viver intensamente os dias que se sucedem continuamente, no misterioso descortinar desse tempo universal. Foi assim com a viola, que dedilha com uma intimidade secular, foi assim com a fotografia, que domina não por cursos mas pela sensibilidade do seu olhar, foi assim com a cozinha gourmet, que reinventa a cada jantar numa orquestração de ingredientes que mistura por intuição olfactiva ... foi assim comigo, como um livro que sempre soube ler, mesmo antes de ter sido escrito...

Cruzei-me com o teu pai aos 26 anos, e somos a prova de que o amor se pode revelar à primeira vista, deixando mensagens secretas no ar como um enigma que se convida a desvendar. Nós deixámo-nos guiar por essas pistas sussuradas e chegámos aqui, com uma Vida plena de viagens, de descoberta um do outro e do mundo, com uma Vida brindada com a família e amigos, com uma Vida que está prestes a prolongar-se em ti. Temos por isso à nossa frente tanta mais Vida para aproveitar, tanto horizonte por perseguir, agora a três ...

Vais adorar descobrir no teu pai o parceiro para uma boa brincadeira inventada, o orgulho de ser benfiquista, a vontade de sorrir e fazer rir, o gosto por desafiar o desconhecido. Vais aprender com ele a consciência de que a vida tem de ser reinventada a cada dia e que o destino se percorre antes de mais pela nossa mão e olhar. As palavras com o teu pai não se desgastam mas ganham história e sentido crescente. Umas delas, verás, é o amor.

Bem vindo à Vida Gastão.

E da mesma maneira que eu e o teu pai nos revemos na nossa família e nos sentimos felizes por poder crescer com e à volta dela, espero que sintas também essa vontade de nos ter por perto e de partilhares connosco as tuas próprias descobertas. Nós estaremos sempre por perto, prontos a brindar contigo à tua Felicidade.

Thursday, November 27, 2008

Terceira Carta, sobre a tua Mãe

A tua Mãe chama-se Filipa. Nasceu há trinta e dois anos, filha do Manel e da Fátima, teus avós maternos, que na altura viviam em Portimão, no sul de Portugal. Chegou com a Primavera, quando no Algarve os primeiros dias de Sol arrancam à terra a brisa quente que traz consigo uma promessa de amendoeiras.

Em bebé era um pequeno buda de bochechas gordas e passos redondos, aprendendo sobre o triciclo a dominar a força criadora das suas mãos e a energia inquieta das suas pernas cheias de refegos. De franja curta e sorriso reguila para as fotografias, o bebé cresceu e fez-se uma menina bailarina de gestos delicados, dançando pela infância ao som circular de uma caixa de música.

A bailarina cresceu também, e fez-se mulher guardando nos gestos toda a leveza feminina da dança. Aluna exemplar, entrou pela vida de adulto num trabalho como deve de ser, mas cedo sentiu que queria mais para si do que a segurança da previsibilidade. Tornou-se artista, transformando a monotonia do barro num mundo mágico de tartarugas e peixes, meninas que brincam de mãos dadas pela rua e bailarinas que esperam o amor ao cair das estrelas. Painéis, esculturas, candeeiros, cinzeiros ou puxadores nasceram das mãos criadoras da tua Mãe e estão hoje espalhados em casa desses muitos amigos e anónimos que levaram consigo um pouco dessas memórias do barro.

Eu e a tua Mãe acabámos por nos encontrar pelas coincidências próprias de tudo o que parece estar escrito, como se um caminho estivesse já desenhado para nós e só tivessemos que o percorrer. Fizemos um mundo nosso sem precisar de palavras, pressentido desde cedo que o futuro nos pertencia e nos convidava a sonhar, sem pedir licença.

Conhecemo-nos vivendo a dois e em cada descoberta fomos renovando essa certeza que o caminho era mais longo e havia muito para ver. Fizemos a nossa casa na Estrela, um refúgio à nossa imagem decorado a histórias de viagens e segredos guardados sob um abraço dourado de Klimt. Percorremos o mundo à procura de mais estrada, atravessámos fronteiras perseguindo a linha do horizonte, passámos uma vida inteira um com o outro, juntos ao longo de oito meses.

Com o tempo conheci-a melhor, o seu modo simples de ser e de nos fazer sentir bem. A tua mãe gosta de pessoas, e essa é apenas uma das razões que faz com que gostem tanto dela. Tem uma sensibilidade invulgar para as emoções dos outros, um genuíno interesse em ajudar que é tanto a fonte da sua força como da sua vulnerabilidade. Gosta de conversar, seja de assuntos sérios do nosso mundo ou de trivialidades de criança, e tem dentro de si mesma a sabedoria adulta e a criança eterna.

Vais adorar conhecê-la. A primeira vez que vi a tua mãe, pressenti nela algo de maternal, uma ternura que convidava a ficar. Um olhar confiante e sorridente, como uma casa de fundações seguras e janelas abertas para o mundo. Uma beleza doce, serena como uma lareira a crepitar.

Espero que um dia possas amar alguém como eu amo a tua Mãe, meu filho. É algo único, raro, e precioso, um amor do qual tu também serás testemunha. Nasces de um amor intenso, novo como a manhã que todos os dias se renova, maduro como um vinho que toma o gosto da sua história. Um amor destes, tem sempre espaço para mais um.

Saturday, November 15, 2008

Segunda carta, sobre o teu Nome

Que enorme e estranha responsabilidade, a escolha de um nome. O nome pelo qual seremos conhecidos toda a vida, que para nós se confundirá até com a nossa própria noção do "Eu", é afinal escolhido pelos nossos pais antes ainda de nascermos, quando toda a nossa personalidade é ainda um mistério insondável, uma essência em formação.

Quando nos conhecemos, eu e a tua Mãe, como todos os casais apaixonados fizemos planos de futuro, um futuro ao qual já pertencias sem nós sabermos, e projectámos os nomes que daríamos aos nossos filhos. Vicente, Tomás, Beatriz ou Vera eram alguns dos nomes desses meninos e meninas que, ainda sem corpo ou alma, ganhavam forma na nossa família imaginária.

E um dia soubemos que vinhas a caminho. Na tua segunda ecografia mostraste-nos orgulhosamente que eras um rapaz, e desde logo soubemos também o teu nome: Gastão.

Um nome diferente, é certo, pouco comum até nos dias de hoje dirão alguns. Mas um nome com história também. A história particular do teu nome nasceu muito antes de ti, no avô do teu Pai que para ti também será o Avô Gastão.

O teu Avô nasceu há muito tempo atrás, na década de 1920, um tempo antigo em que não havia televisão e as pessoas passavam os serões a conversar e a ouvir as notícias na rádio. Eram ainda poucos os carros que atravessavam as cidades, e os primeiros aviões começavam a cruzar os céus para estranheza dos pássaros.

A muita coisa assistiu o teu Avô Gastão: à guerra e à paz e a outras aventuras dos homens, histórias próximas e distantes que um dia terá oportunidade de te contar, e às quais terás que prestar muita atenção. Afinal, há muita sabedoria em quem viveu mais anos que nós, quem viu nascer tudo o que nos é familiar e ouviu em primeira mão as notícias que agora se escrevem nos livros de história.

Algumas das minhas melhores e mais presentes memórias de infância foram passadas com o teu Avô Gastão. Sempre foi o meu companheiro de brincadeiras. Foi o Avô que sempre conheci, o meu único Avô por razões diferentes da vida, que desde pequeno me acompanhou e me levou pela mão nos seus (nossos) passeios de fim de semana.

Lembro-me como se fosse hoje das idas ao Campo Grande para andar nos carros a pedais ou das idas ao Estádio da Luz, duas horas antes do jogo e com um farnel preparado, gloriosas tardes de Domingo em que aprendi a ser do Benfica e a conhecer de cor os nomes dos jogadores. Lembro-me do movimento que o seu Citroen BX fazia a levantar as rodas antes de arrancar, os seus muitos objectos de antiquário caseiro acompanhados de curiosas explicações, ou das longas e bem arrumadas colecções de selos de países desconhecidos que exerciam um estranho fascínio em mim. Lembro-me de muitas pequenas coisas, como o prazer que sempre teve numa boa refeição, a forma única que tinha de nos fazer cócegas até chorar a rir, ou de expressões muito suas como "tufa!", "tou, tou!" ou "levado da breca".

No mundo dos adultos e das suas regras, às vezes difíceis de perceber, o Avô Gastão nunca teve filhos, pelo menos de sangue e cartório notarial. Mas a verdade é que teve filhos e muitos netos, uma família inteira que sabe que ele é um homem bom, generoso, que sempre gostou de uma boa conversa e de uma boa história. Um homem que sempre gostou de pessoas e abraçou todos esses filhos e netos como se fossem seus, como o foram de facto.

O teu nome, Gastão, é também uma homenagem ao teu Avô e ao que ele representou para o teu Pai. Mas não vejas nele o peso da responsabilidade, antes um símbolo de continuidade. Uma forma de dizer que a família não é uma convenção mas algo de vivo, feito das emoções e do amor que as alimenta.

Mas para lá de tudo isso, o teu nome é uma tela em branco. Quando ouvirem o teu nome, as pessoas atribuir-lhe-ão o significado que tu próprio lhe deres através de tudo o que é único em ti, o que tiveres de bom e de imperfeito, as tuas virtudes ou defeitos. O que tiveres de generoso e de sonhador, a tua sede de descoberta, o teu olhar sobre o mundo, tudo isso será condensado no estandarte que usarás como teu nome, Gastão.

Espero que gostes, meu filho. Mas afinal, foste sempre tu que escolheste o teu nome.

Friday, November 14, 2008

Primeira carta, sobre o Mundo que te espera

Ainda não nos conhecemos, por isso deixa-me antes de mais apresentar-me: tenho trinta e um anos (quase trinta e dois) e sou filho de um senhor chamado Fernando e uma senhora chamada Margarida. Nasci aqui mesmo em Lisboa, Portugal, e aqui vivi quase toda a minha vida. Casado com uma mulher linda, Filipa, moro na Calçada da Estrela junto ao Jardim com o mesmo nome. Chamo-me João, mas ao longo da tua vida hás de conhecer-me mais habitualmente pelo nome de "Pai".

Teremos muito tempo para falar, mas queria já contar-te algumas coisas sobre o mundo que te espera. O teu quarto cá em casa tem vista para o pátio, com dois vasos de ervas aromáticas que pusemos junto à tua janela para conheceres desde cedo o mundo misterioso das plantas. Não é muito grande, mas será mesmo à tua medida nestes teus primeiros anos, com espaço suficiente para brincares pelo chão e para um berço que acolherá os teus sonhos inaugurais. Ainda não está pronto, mas tem já uma cómoda grande para guardares a tua roupa e um pequeno sofá para a tua Mãe te contar histórias e te alimentar a leite materno e doces canções de embalar.

O Bairro da Estrela que será a tua primeira casa no mundo é muito simpático, um bairro antigo de Lisboa onde a história da cidade se cruzará com a tua. O Eléctrico passa mesmo à nossa porta, certamente reconhecerás o som característico que o acompanha, uma estranha música feita de faíscas e ruídos metálicos que fazem lembrar os carrinhos de choque. Os sinos da Basílica, solenes como uma procissão, soam a cada quarto de hora e ecoam sonoramente pelas ruas cobrindo-as de um manto familiar, um sentimento de aldeia que atravessa a barbearia, o talho e os cafés marcando o ritmo da vida no bairro.

O Jardim da Estrela fica mesmo em frente, e será o teu recreio das horas vagas, um jardim enorme à espera dos teus passos iniciais onde poderás jogar às escondidas entre o coreto e as árvores centenárias sob a companhia cúmplice das estátuas. Descobrirás esse mundo cheio de vida onde as outras crianças vêm brincar, espalhando risos e campainhas de bicicleta pelo jardim, e também tu aprenderás a reconhecer as aves pelos seus nomes e hábitos particulares, a frenética agitação dos pombos, a curiosidade interessada dos patos do lago e o passo aristocrático dos pavões.

A cidade onde vivemos, Lisboa, muitos dizem que é uma das mais belas cidades do mundo, antiga e gasta como um retrato de família passado entre gerações, orgulhosa da sua história de descobertas mas ao mesmo tempo enérgica e vibrante como uma visão da modernidade. Entre o seu passado e futuro, é um lugar que sabe viver o presente, onde se está bem nos cafés e nos miradouros, onde ainda há fins de semana e fins de tarde sempre que quisermos tirar tempo para nós. Mesmo quando sentires vontade de conhecer mais mundo, Lisboa será sempre a tua casa, um porto de abrigo à tua espera com os seus cheiros e recantos familiares.

Sobre esse Mundo dos países e dos continentes, teríamos muito para falar, mas será melhor que o descubras com os teus olhos, conhecendo a cores vivas tudo o que existe para lá dos livros e dos mapas e de tudo o que ouviste contar. Terás tempo para o percorrer pelos teus passos, das cidades do futuro às antigas paisagens onde pára o silêncio, observando as gentes e os seus estranhos hábitos e aprendendo por ti próprio a compreender a diferença nos outros, uma sabedoria que te fará mais rico, e mais humilde também.

Certamente terei muito mais para te ensinar, e tanto para aprender contigo ao longo dos anos em que cresceremos juntos, mas temos tempo. Ainda não nos conhecemos, mas temos a Vida inteira pela frente.

Wednesday, November 12, 2008

Quarto com Vista

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Monday, October 20, 2008