Tuesday, January 31, 2006

Excentricidades

Eu não acredito no euromilhões. Não conheço ninguém que alguma vez tenha ganho sequer mais do que o 5º ou 6º prémio, pouco mais que vinte euros. Acho mesmo que nunca ninguém ganha o jackpot do euromilhões. Admito que o esquema está bem feito, bem publicitado, afinal a chave secreta parece estar todas as semanas à nossa frente, basta encontrarmos o caminho certo entre a caneta e o painel de números. Mas não, a mim não me enganam, o euromilhões é um embuste.

183 milhões de euros. Fiz as contas, e a não ser que tenha um valente aumento salarial na minha próxima avaliação de desempenho, para acumular a mesma quantia vou ter que trabalhar intensamente durante os próximos 7625 anos. Incluindo fins-de-semana.

É disto que o meu povo gosta. O entusiasmo desenfreado que se gera antes dos jackpots do euromilhões é a prova de que nunca ninguém está satisfeito com o que tem. Quando o jackpot são 73 milhões de euros, é ver a corrida aos balcões do euromilhões, filas intermináveis à hora do almoço e às sete da tarde de sexta-feira, colegas de escritórios a fazer poules de apostas, um industrial de Miranda do Douro a gastar cinco mil contos em cruzinhas e a rir-se bacocamente para a câmara da TVI enquanto dá calduços ao puto. Na semana seguinte, foi-se o prémio para a Irlanda, o primeiro prémio passa para 10 milhões e já ninguém liga. “Pois, o que me fazia mesmo jeito eram os 73 milhões de euros para dar uma volta à minha vida, agora 10 milhões, menina, oh isso vai-se num instante”. Pois sim, eu se ganhasse 10 milhões também não mudava a minha vida e continuava a ir na Vimeca para o meu T1 no Barreiro.

O euromilhões é um bilhete dourado ao estilo d’ “A Ilha”, um gigantesco farol construído para manter uma certa ordem e sanidade mental, acenando a todos a possibilidade real de nunca mais termos de trabalhar. Uma réstia de esperança. Uma forma de nunca nos habituarmos à ideia de ter que acordar cedo aos dias de semana, ao conceito de que tudo na nossa vida depende do esforço que pomos nas coisas. E é por isso que o euromilhões é um sucesso enorme em Portugal, não há português que não prefira depositar a sua sorte no jogo das panelas, na raspadinha, totoloto ou no jogo do galo do que na ideia de trabalhar para se sustentar.

Vão trabalhar, malandros!

Monday, January 30, 2006

A Vida antes da morte

A ideia da morte incomoda-me. Para além da questão metafísica, ou do pequeno calafrio que me provoca aquela possibilidade de nunca mais voltar a existir, o que me incomoda é todo o ritual. O verdadeiro problema com a morte é que é a coisa mais mórbida que há.

A morte dos comuns não tem nenhum sentido estético, nenhuma nobreza no modo como se entrega um corpo à terra. O caixão solene, uma fotografia demasiado recente, a retroescavadora no cemitério, as covas já abertas para a próxima dezena que está para chegar, as palavras fúnebres, mortuárias, funerárias. Tudo rima com defunto e finado, beatas e carpideiras. É uma cerimónia de dor, de angústia, uma despedida cinzenta pensada para amplificar a tristeza dos que ficam, esquecendo quem parte. Falta alma aos funerais.

Mário de Sá Carneiro dizia: “quando morrer, chamem palhaços e acrobatas”. Essa seria a única forma de celebrar condignamente a partida de alguém. Com a sua música preferida, os seus melhores momentos, as fotografias de férias e de infância, as anedotas que contava, o modo como se ria. Uma despedida alegre que celebrasse também a vida, feita das imagens e palavras que são muito mais eternas que nós.